Início Arte e Cultura por Adriana Sorgenicht Teixeira 40 anos….. e um encontro a relembrar (II)

40 anos….. e um encontro a relembrar (II)

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Na segunda parte de nossa homenagem ao Poetinha (como foi carinhosamente apelidado por Tom Jobim), o ator, diretor, produtor e professor Rubens de Mattos Teixeira vai relembrar casos e discorrerá sobre sua admiração de longa data pelo dramaturgo, jornalista, diplomata, cantor e compositor brasileiro, que nos deixou em 9 de julho de 1980.

De quebra, vai relembrar e nos revelar uma situação divertida vivida por ambos no final da década de 50, quando da passagem por Montevidéu, capital paraguaia, da companhia teatral comandada pela atriz Cacilda Becker, que Teixeira integrava na qualidade de ator.

Como conheci Vinicius – Primeiro Ato

O dia 5 de março de 1958 marca a estreia do Teatro Cacilda Becker, com O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna, completando um repertório de seis peças, com vistas a uma temporada de seis meses em Portugal. Percorremos São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba e Recife antes disso, até chegar em Lisboa no ano seguinte.

No final da temporada em Porto Alegre (RS), um empresário uruguaio convida a equipe para um final de semana em Montevidéu, graças ao grande sucesso de O Auto da Compadecida, apresentado anteriormente naquele país.

Walmor Chagas interpretava o personagem Pinhão, Ziembinski era Euricão Engole Cobra, Cleyde Yaconis, a Caroba, principal personagem feminino. Os demais atores eram Fredi Kleemann, Kleber Macedo, Jorge Chaia, Cacilda Becker e eu.

Walmor e Cacilda eram sócios na companhia e tinham de permanecer em Porto Alegre (RS) para a ajuda do governo gaúcho às companhias teatrais.

Walmor, acompanhado de Ziembinski, me perguntou se eu toparia substituí-lo no papel do Pinhão. Respondi que já tinha o texto e a marcação na memória e na ponta da língua desde os ensaios e as viagens anteriores.

Assim foi feito. Rumei para Montevidéu para viver o papel do galã Pinhão; Cacilda seguiu conosco, pois era a titular da marca TCB, embora sua personagem fosse de menor destaque.

Confesso ser uma completa negação, quando o assunto é cantar ou tocar qualquer instrumento musical. Já havia sido expulso de dois corais por desafinar demais e atrapalhar os respectivos grupos. Mas no papel de Pinhão não teve outro jeito. Tive de me virar e entoar uma modinha com o mínimo de competência:

Ô Lírio, ô Lírio, ô Lírio
Ô Lírio, como é?
Bom almoço, boa janta
boa ceia e bom café.
A vaca mansa dá leite,
A braba dá quando quer!
Fredi Kleeman, Cleyde Yáconis, Walmor Chagas e Cacilda Becker, em O Santo e a Porca

No espetáculo Walmor Chagas também não cantava bem, mas sabia tapear e dava conta do recado, acompanhado por um jovem ao violão, na coxia e com o som amplificado. A cada cidade em que chegávamos logo se contratava um violeiro para a temporada, de um mês ou quinze dias. Ziembinski, o diretor, exigia que fosse ao vivo, pois não gostava de gravação em fita ou disco.

Chegamos em Montevidéu numa quinta-feira, ensaiamos na sexta-feira à tarde, no Teatro Municipal. Para nossa surpresa, vale relembrar, logo em seguida surge Vinicius de Moraes em pessoa convidando todo o elenco para uma ceia em sua residência, e lá fomos nós (éramos seis…, sem trocadilho….) para a mansão do cônsul.

Vinicius nos recebeu maravilhosamente, conversa inteligente antecedendo os aperitivos da melhor qualidade. Aguardávamos com ansiedade para conhecer sua atual esposa, possivelmente já a quinta ou a sexta de sua longa lista (nove no total).

Havia na sala uma escadaria de mármore como nos filmes de Hollywood, corrimão dourado, um deslumbramento. O poeta percebeu nossa ansiedade e comentou: “Minha companheira está se preparando para recebê-los.” De repente surge uma deusa no alto da escada, muito bem vestida, esplendorosa, simpatia e beleza numa única mulher.

Ficamos todos atônitos, boquiabertos. Apresentações feitas, Cacilda não se conteve e perguntou delicadamente: “Como foi mesmo que vocês se conheceram?” Vinicius já esperava a pergunta…”Eu a conheci durante festas realizadas nas embaixadas de países para os quais fui destacado pelo Itamaraty.” (Nota: quando uma nação comemora a independência ou outra data histórica importante, embaixadores ou cônsules dos países amigos são convidados para celebrá-la em conjunto) E prosseguiu para relembrar logo depois: “Sempre era convidado e já levava meu violão no carro, porque quando já estavam todos embriagados havia sempre um colega a me convocar: – “Vinícius, cadê o violão?”

Depois, empunhando um copo de uísque, sorriu e se dirigiu à sua Vênus: “Meu amor, conte como nos conhecemos!” A deusa sorriu discretamente e comentou de maneira simples e suave e começou a relembrar: “Eu ainda não conhecia Vinicius! Era casada com o embaixador que oferecia uma festa. Estava longe da sala quando percebi o silêncio de todos e o som de um violão. De onde eu estava ouvia perfeitamente o canto e, de repente, a voz declamando um soneto de amor tão sublime, não sei o que aconteceu…., fui levada em êxtase, atraída pela melodia e as canções de amor. Ele percebeu e quando me aproximei dele….Vinícius interrompeu e disse baixinho: – “Vem comigo!?” E ela: “Aqui estou, vamos, meu amor.”

Como conheci Vinicius – Segundo Ato

Na manhã seguinte fomos para o teatro e Cacilda Becker me chamou no camarim. “Rubinho, não temos o violeiro para te acompanhar na canção!” Respondi: “Vou falar com o pessoal do teatro e fazer alguns contatos. E se pedíssemos ao Vinicius?” “Você está louco? Chamar o embaixador para tocar por um minuto na coxia?” Argumentei: “Cacilda, ele tem paixão pelo seu trabalho e percebi como ele a observava. Demonstra um carinho muito grande por você e, depois, se ele se negar por algum outro compromisso, deve conhecer outros artistas que toquem violão. Vamos telefonar para ele.”

Fomos ao escritório do teatro, solicitamos uma ligação, Cacilda explicou a situação ao poeta e perguntou se conhecia quem tocasse violão. Vinicius respondeu: “A que horas vocês vão ensaiar?” “Às 16 horas”, ela respondeu. “Às 15 horas estarei aí, avise ao ator que vai cantar”, pediu o poeta.

40 anos..... e um encontro a relembrar (II)

A ideia foi minha, mas com o resultado fiquei boquiaberto, embasbacado! É bom relembrar. Como disse antes, sou desafinado, não conheço sequer uma nota musical e o cônsul no Uruguai e maior poeta brasileiro iria tocar violão por um minuto, na coxia de um teatro!??? Que absurdo! Fosse o que Deus quisesse!

Às 15 horas em ponto do dia combinado Vinicius estava no palco. Fui logo me desculpando: “Poeta, não sei cantar e estou mais nervoso ainda por tomar seu tempo.” “Vamos lá! Esqueça quem eu sou. Cante e me explique a cena”, pediu ele. Soltei a voz: “Ô, Lírio! Ô, Lírio!”

“Mais desafinado impossível….”, lamentou meu ilustre acompanhante. “Vamos tentar de outra maneira!” Eu recomeçava bem e, de repente, doía até nos meus próprios ouvidos… Ficamos meia hora num trecho de um minuto…. “Esquece tudo! Cante desafinado, mas consciente, se solte, que eu te sigo no violão, combinado?” recomendou. Entendi o que quis dizer e mandei ver nos três Lírios, cada um num tom mais escrachado, e ele ao violão – brooommmm! Broooommmm! Broooommmm! Quando acabou, pra nossa surpresa, o público gostou e aplaudiu!

Que homem extraordinário que bondade, que poeta, que ser humano…. é a lembrança que trago dele para sempre, o que fez pela música e pela arte brasileira, com seus parceiros e até mesmo com aqueles sem o menor talento musical, como eu.

Leia também da mesma autora 40 anos sem Vinícius e um encontro a relembrar (I)